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domingo, 19 de março de 2017

Ainda António Lobo Antunes: para ele, não escrever é ficar doente.




"O que posso fazer? (...) Quando não escrevo não me sinto bem, sinto uma espécie de angústia; uma coisa física difícil de explicar. Tenho a impressão de que me fizeram para escrever."

"Às vezes penso que talvez tenhamos nascido com certo número de livros cá dentro. Se eu não os escrever, a minha vida não tem sentido."

António Lobo Antunes

sábado, 18 de março de 2017

António Lobo Antunes: "O cancro é uma puta, senhor Barata. Livre-se!"



António Lobo Antunes recebeu esta quarta-feira à noite o prémio "Vida e Obra" da Sociedade Portuguesa de Autores. Numa raríssima aparição num evento público, o escritor subiu ao palco, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para receber o prémio e fazer um pequeno discurso.

Até um pequeno discurso deste homem é genial e comovente!

A partir do minuto cinco, Lobo Antunes começou a falar de (e com) um tal de senhor Barata, um senhor que almoça sempre sozinho. A história comoveu a audiência (e a mim também). Veja o vídeo:





Um prémio muito merecido!

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Festival Internacional de Cultura, em Cascais, arranca com debate entre irmãos Lobo Antunes


O primeiro Festival Internacional de Cultura (FIC) vai arrancar esta sexta-feira, em Cascais, mas é no sábado que um dos grandes momentos acontece, com o escritor António Lobo Antunes a ser entrevistado pelo irmão, o médico João Lobo Antunes.

Ao longo de dez dias, de 3 a 12 de julho, vários nomes da música, teatro e literatura vão estar reunidos para “celebrar os livros”.
 
Saiba mais AQUI

Fonte: Observador

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Os Pobrezinhos": uma crónica de António Lobo Antunes

 
Cartoon de Ross Thomson
 
 
A crónica que se segue é uma crítica contundente às "tias" e beatas que usam o que fazem pelos pobres não para o bem destes mas para massajarem o ego e abrilhantarem as aparências, olhando-os do alto da sua soberba, humilhando-os com a sua generosidade fingida. Tenho dito. António Lobo Antunes di-lo melhor:
 
 
«Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros - O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis.»
António Lobo Antunes

terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Amorzade" e a escrita enquanto analgésico

Termo usado por António Lobo Antunes na sua mais recente crónica para a revista Visão. Aqui deixo dois excertos:

"O pintor italiano Valerio Adami dedicou-me assim um desenho. Com amorzade e a justeza da expressão surpreendeu-me: não me tinha passado pela cabeça que é exactamente o que sinto pelos meus amigos, os vivos e aqueles que morreram, ou antes, não morreram, só não puderam vir hoje, logo à noite ou amanhã telefonam e estarão no sítio em que combinámos, sem falta, e a gente a abraçar-se às palmadas nas costas. Porque razão os homens se abraçam sempre às palmadas nas costas? Sobretudo se estivemos uns tempos sem nos vermos é um festival de pancadaria cúmplice, acompanhado de palavras ternas tais como
- Meu cabrão
e outras doçuras no género.

(...)

Isto, de criar, palavra de honra que é muito difícil, mas é a única forma de as dores secretas abrandarem. E então fingimos que não há nada e continua-se. O que custa um livro, o que deve custar um desenho, um simples traço até. Porém é um tormento que equilibra e igualmente, em certas alturas, um júbilo indizível. Felizmente que ando com um livro, numa altura em que a minha relação comigo me tem feito sofrer..."

Podem ler na íntegra AQUI.


sábado, 16 de abril de 2011

António Lobo Antunes e a angústia de não conseguir concluir o que não tem fim

Mais uma crónica de António Lobo Antunes, "Deste profundo abismo, senhor", sobre a angústia da morte lhe roubar a possibilidade de concluir o que não tem fim:




Os livros que escrevi trazem o meu nome mas tenho dificuldade em encontrar os seus autores. Só aquele que estou a escrever é feito por mim, os restantes parece-me sempre terem sido outros homens que os compuseram. Posso reconhecer-me no que sou hoje em algumas expressões, alguns desenhos de frase, alguns parágrafos talvez, gosto deles mas afiguram-se-me passos já dados, e que não desejo repetir, na direção do meu trabalho de agora, que, de certo modo, os engloba a todos. Julgo que compõem um único texto, ou que são afluentes de um único texto ainda não completo, e que, por mil anos que viva, ficará irremediavelmente truncado. Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim. Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo. Construirei uma obra mais duradoira que o bronze, afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o inevitável destino da condição humana. Goethe consolava-se declarando ser o facto de não chegar ao termo a nossa única grandeza. E não conheço, em tantos autores que li, um só para quem este problema não constitua o drama da sua existência. Não se alcança a praia por mais que se nade, não há fita de chegada para esta maratona angustiosa e exaltante. Quando a doença me filou pelo pescoço, essa ansiedade envenenou-me as horas. E, quando a mão me soltou, a marca dos seus dedos imprimiu-se-me na pele. Um dia, o conjunto de átomos que me compõem desintegrar-se-á sem remédio, e eu a meio da página de que não redigirei a última linha. Tenho o maior respeito pelos criadores visto que acabam sempre por perder e não mereciam perder. E tenho pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto, aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com idêntica indiferença. Lembro-me das terríveis anotações de Mozart nas margens do seu Requiem, não tenho tempo, não tenho tempo, idênticas às de Gallois, que levou toda a noite a escrever antes do duelo que, de manhã, o matou, tentando condensar em poucos momentos as assombrosas descobertas dos seus dezanove anos de vida. É isto justo? E a resposta vem sinistra: é. Quem escolhe, ou foi escolhido, para este tipo de destino, finda, inevitavelmente, assim. É muito rara a correspondência de pintores, ou escritores, ou compositores em que a tragédia de que falo não esteja constantemente presente, como uma chaga viva. Piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro, suplicou Apollinaire e, de facto, somos dignos de piedade. Há uns verões, num mosteiro da Roménia, o bispo cantou, com os padres e os seminaristas, uma oração pelas almas eternas dos escritores falecidos. Era uma igreja belíssima, no alto de uma encosta batida pelo vento e pelos grandes bandos de corvos chegados da Ucrânia, cujos campos de trigo se viam muito ao longe, e o canto, de dezenas e dezenas de vozes, alargava-se pelas nogueiras à volta da igreja, profundo, omovente, cheio, em simultâneo, de tristeza e de esperança, enquanto eu pensava em Gogol, o grande génio da Ucrânia, que nos retratos se assemelhava a um corvo, botando no fogo, a soluçar, toda a segunda parte das suas extraordinárias "Almas Mortas" e, em seguida, deitando-se na cama, recusando comer, até à agonia poucos dias depois: a literatura também tem os seus mártires, e nunca esquecerei a comoção que senti nessa igreja e a certeza que Gogol voava também, com os restantes corvos, em torno da colina, sobre as nogueiras em flor. Apollinaire, ainda: abram-me esta porta à qual bato a chorar, num verso que poderia ter sido composto por qualquer criador e que está sempre presente em mim diante de todas as obras de Arte. Abram-me esta porta à qual bato a chorar, é o que oiço, desde os poemas babilónicos, de há doze mil anos, até à mínima palavra de hoje. E quando Maiakovski explicou


(desculpem tanta referência)


comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós. Conheci homens políticos importantes, desportistas excepcionais, criaturas de extrema bondade, santos anónimos de alminhas puras mas jamais me emocionei tanto como perante os criadores, não pela sua capacidade de nos oferecerem a beleza na palma da mão estendida, juntamente com a dignificação do Homem, mas pelo enorme padecimento inerente a esta capacidade, e a certeza pavorosa do seu trabalho estar destinado a ficar incompleto. Vem-me à cabeça Tolstoi moribundo, numa estação de caminho de ferro, percorrendo o cobertor com os dedos no gesto de escrever. É dessa maneira que gostaria de me ir embora: a escrever, com os dedos incertos, numa dobra de lençol, na tentativa falhada de completar o meu De Profundis necessariamente fragmentário. Oxalá, numa igreja da Roménia, cercada de corvos e nogueiras, um único seminarista, porque um único seminarista me chega, reze cantando pela alma eterna de mais um pobre escritor falecido.

 
Fonte: Revista Visão, edição de 14 de Abril de 2011

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Uma inquietação constante é fundamental para a criação




"Eu penso que aquilo que faz com que nós continuemos vivos e capazes de criar é isso mesmo, uma inquietação constante. Sem ela não pode haver criação, quem não põe sempre tudo em causa, arrisca-se a ter uma vida interior de três assoalhadas, num bairro económico."

António Lobo Antunes


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Quem tem medo do lobo mau, perdão, Lobo Antunes?

«Amado por uns, odiado por outros, reconhecido por todos. Lobo Antunes é dos escritores portugueses mais respeitado dentro e fora de portas. Já António, o homem, poucos o conhecerão. Reservado, profundo, visceral, não lhe faltam histórias polémicas, que acabam invariavelmente nos jornais. Talvez ele nem as leia: não lida bem com a crítica e não gosta de dar entrevistas porque as considera irrelevantes. Mas, mais do que tudo, porque uma história de jornal nunca passa disso, de uma história, com toda a ficção e realidade que pode conter: "Sou arrogante, mal-educado, rebelde, geralmente sou sempre o António Lobo Antunes somado a qualquer coisa desagradável. Não corresponde a nada do que sou, a nada", disse em entrevista ao Expresso o autor de "Sôbolos Rios que Vão", o seu novo livro que acaba de ser editado».


Este é um excerto de um artigo publicado hoje pelo Jornal i. Leia tudo AQUI.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Uma crónica com muito amor, poucas palavras e pequenos gestos...

Como fazer chichi contra as paredes...porque isso é de homem...pieguices não!

Excelente crónica de António Lobo Antunes, a desta semana, para a revista Visão:

O João trouxe-me um Santo António pequenino de Pádua: comoveu-me que se tivesse lembrado de mim. Na minha família não se fala de mariquices mas, de vez em quando, há gestos destes, de ternura escondida, como quem não quer a coisa. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar? Pelo menos entre nós é assim: não há elogios, não há censuras, raramente há perguntas. Para quê? Há um estar ali que é já tanto. Diz-se sem as palavras e percebe-se que se diz e o que se diz porque o clima, não sei explicar de outra maneira, se torna diferente. Não falamos do que cada um faz: a gente sabe. Do que cada um sente: a gente sabe. Não se fala do sofrimento, não se fala da alegria: a gente conhece. É melhor desta forma. Uma única ocasião o meu pai fez-me uma confidência, sacudiu-a logo com a mão



- Chega de pieguices



e alegrou-me que se penitenciasse por transgredir as regras. Não há efusões, não há gestos e, no entanto, as efusões e os gestos estão lá. Quem souber ver que veja, quem não souber é porque não pertence à tribo. Não há lamentos: porque é que hei-de lamentar a minha sorte, interrogava o grego. Não há censuras, não há críticas, salvo em ocasiões muito, mas mesmo muito, especiais. O Zé Cardoso Pires percebia isto



- Vocês estão muito ligados



disse-me um dia, e mudou logo de paleio.



- Nenhum escritor gosta de falar do que escreve



afirmava ele. E, realmente, nunca falámos um ao outro do que escrevíamos. Quase todos os dias conversávamos mas não se tocava nesse assunto. Quando muito



- Estás a trabalhar?



e acabou-se. Ou



- Não estou a trabalhar



e acabou-se. Uma tarde telefonou-me



- É para te dar os parabéns porque ganhei um prémio



desviou logo o assunto e isto é o cúmulo da amizade. Foram os parabéns que, até hoje, mais prazer me deram. Até as nossas dedicatórias mútuas eram secas: Para o António do Zé, Para o Zé do António e um rectângulo à volta, a cercar as palavras, a fechá-las lá dentro. O rectângulo, claro, era o mais importante, e o que estava naqueles quatro riscos, meu Deus. Maior elogio mútuo



- Belo livro



maior crítica mútua: silêncio dentro de um soslaio breve. Não, maior elogio:



- Posso ser amigo de um médico, de um engenheiro, de um pedreiro. Para ser amigo de um artista tenho que admirá-lo.



Passeávamos de braço dado na rua. Com o meu irmão Pedro, por exemplo, darmos o braço é fazermos chichi juntos, no escuro, junto à cascata do jardim dos meus pais, com um comentário sobre o jacto respectivo. Depois sacudirmos os pingos ao mesmo tempo porque a pila não sabe fungar. Então abotoamo-nos e cada um vai para o seu lado, em silêncio. Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade, a olharmos para baixo, cheios de duplos queixos. Tanto che che che nesta frase. Fazer chichi na rua é um dos meus prazeres, devo ter sido cachorro noutra encarnação. Detesto urinóis, retretes: haverá alguma coisa que se compare à exaltação de mijar contra uma parede? Às vezes, a seguir ao jantar, digo ao Pedro



- Já mijaste?



sabendo que ele estava à minha espera para essa celebração da cumplicidade. Nem que sejam três gotas faz-se um esforço. Vemos as árvores, vemos o muro, não nos vemos um ao outro mas estamos ali. Nem quero pensar na ideia de fazer chichi sozinho. No fim pergunta-se



- Como é que estás?



sabendo que o parceiro se cala. Depois cada um no seu carro, sem mais palavras. Um atrás do outro e, a certa altura, separamo-nos, com um sentimentozito de despedida que custa. Quer dizer não custa assim tanto, custa um bocadinho e passa. Eu vou fazer redacções, ele vai fazer não sei o quê: pouco importa. Importa que durante uns momentos estivemos juntos. Agora interrompi esta crónica porque fui lá dentro espreitar o Santo António antes de lhe pôr o ponto final. Que pena um ponto final ser tão pequenino.

 
António Lobo Antunes
Publicado em 31 de Mar de 2010 AQUI.
 
Muito bom!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A escrita e a ténue fronteira entre a autobiografia e a ficção.

Fascina-me sempre a forma como um escritor se expõe, se denuncia, numa ténue fronteira entre a autobiografia e a ficção.


Esta é uma reflexão minha depois da leitura da última crónica de António Lobo Antunes, esplêndida como sempre. Nela o escritor revolta-se contra a velhice, lembra de como diziam que era bonito, o surpreendente assédio das raparigas, a vez em que foi a uma casa de prostitutas e fugiu pelas escadas abaixo, as doenças de família, os suicídios, o remorso pelos momentos em que se afasta das palavras escritas. Para ler aqui.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"Adoro as tuas unhas de puta "

   "- Adoro as tuas unhas de puta
como adoro a cabeça de perfil e os olhos fechados, o modo de dizer
   - Minha riqueza
os dentes no meu ombro. Tudo treme no vento e se refaz, tudo se desarticula na água e permanece inteiro, os teus pés descalços nos pedais do carro, os calcanhares, um após outro, no apoio do lavatório para o creme das pernas, os pontinhos brancos que distribuis pela cara antes de os espalhar, o secador levantando o cabelo molhado, o modo de apertar o soutien nas costas numa habilidade de contorcionista, o nariz franzido vasculhando o frigorifico, uma joaninha num ramo de rosas, o modo rápido de lidar com os objectos e nisto, de repente, a surpresa de uma ternura vagarosa, ávida, os bicos do peito a crescerem, a mansa ferocidade dos dentes".

Excerto da crónica de António Lobo Antunes, Gaivotas pequeninas, publicada na Visão desta semana.



Leio e penso logo: Intimidade. Casal. Gestos quotidianos em comum.

E fico a imaginar como serão as unhas de puta... :)

António Lobo Antunes fala da verdade intocada e da arte que imortaliza

O novo livro de António Lobo Antunes, “Que Cavalos são Aqueles que fazem Sombra no Mar?”, foi apresentado no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa. O escritor fez uma série de alusões e citações que vale a pena reter:

"Depois de afirmar que “é muito difícil falar de um livro” e de citar o seu falecido amigo José Cardoso Pires, que dizia que nenhum escritor gostava de falar sobre o que escrevera, Lobo Antunes tentou, embora admitindo: “Há ali uma parte que me escapa”.

Falou de um verso de Ovídio que sempre o obcecou e continua a obcecar - “Lentos, lentos ide, ó cavalos da noite” - do seu quadro preferido, “As Meninas” de Velásquez, e de uma frase de Einstein citada pelo pianista Alfred Brendel: “É preciso fazer as coisas o mais simplesmente possível mas não mais simplesmente do que isso”.

Observou, depois, que “a arte é a nossa única hipótese de vitória sobre a morte”. “Daí o medo que existe da arte - é que ela contém em si uma outra forma de olhar para as coisas, que nós recusamos. Então, é muito tranquilizador as telenovelas, aquilo a que chamam ‘literatura light’, que não sei o que é... todas essas formas de expressão de sentimentos que nos impedem, de facto, de entrar no íntimo de nós”, referiu.


(...)


António Lobo Antunes anunciou a intenção de “continuar a viver com a orgulhosa humildade” com que sempre tem vivido e concluiu com uma frase de Newton: “Não sei o que o futuro pensará de mim. Sempre me imaginei uma criança a brincar na praia, que às vezes encontra um seixo mais polido, uma conchinha mais bonita, enquanto o grande oceano da verdade permanece intacto à minha frente.

Excerto de um artigo do jornal Público de hoje.

Bonita citação a de Newton! É tão fácil distrair-mo-nos e lutarmos por grãos de areia ignorando miseravelmente a imensão da verdade maior!

E defendo a simplicidade às vezes tão difícil que Einstein defende (é tão fácil cair nos buracos da complicação!).


sábado, 3 de outubro de 2009

António Lobo Antunes fala da sua relação com Deus

"A minha relação com Deus tem sido sempre tumultuosa, cheia de desacordos e discussões: longos períodos em que me afasto, alturas em que me aproximo, amuos, quase insultos, discussões. Creio firmemente que, nos livros que escrevo, é Ele que guia a minha mão e não passo de um instrumento da Sua vontade".

 

Este é um excerto da belíssima crónica do escritor que saiu esta semana, em 1 de Outubro de 2009, na Visão, De profundis.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Lobo Antunes na "New Yorker"

Ilustração de André Carrilho.


"In the case of Lobo Antunes, that world is the size of a country—small and marginal, perhaps, but teeming with villainy and vice, and as crammed with wounds and festering sores as an overcrowded hospital ward".

Doctor and Patient: A Portuguese novelist dissects his country by Peter Conrad, New Yorker, 4 de Maio de 2009. Na íntegra aqui.


«A revista "New Yorker" publicou ontem, na sua versão on-line, um extenso artigo sobre António Lobo Antunes, assinado por Peter Conrad, que descreve o romancista português como alguém que "permanece obsessivamente local, preocupado com as dores herdadas da história portuguesa e as debilidades culturais do país". O contrário de Saramago, sugere Conrad, cujas "parábolas seculares, geralmente localizadas em países imaginários, zarpam facilmente para a universalidade".»

Peter Conrad, um académico australiano radicado nos Estados Unidos afirma que «à semelhança de "partidos políticos rivais ou equipas desportivas", ambos ( Lobo Antunes e Saramago) dispõem de "partidários ruidosos", e que os de Lobo Antunes afirmam que "o Nobel foi ganho pelo homem errado"».

Acho difícil comparar dois escritores com estilos de escrita tão diferentes, mas confesso que, a votar, votaria Lobo Antunes.

Os últimos dois excertos são de um  artigo da Ipsilon de 01 de Maio de 2009 que pode ser lido na íntegra aqui.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

As orações "soburdinadas" do artolas

" (...) Sinto-me bem nesta casa: livros, quadros, pouco mais. Devo ter herdado esta nudez do meu pai, este desinteresse pelas coisas, morar entre objectos imediatamente úteis. E preciso que o mundo esteja ordenado porque a minha cabeça é um cafarnaum, um sótão cheio de tralha inútil. Com essa tralha inútil faço os livros, vou alinhando o que os outros não querem páginas fora. Na época em que me levavas a correr de mão dada, Ana Maria, não escrevia ainda. Ficava a pensar na morte da bezerra. Mesmo hoje, nos intervalos dos livros, penso na morte da bezerra ou seja não penso em nada, espero. A Vespa do Quim Zé despenteava-me e eu com medo que a menina ficasse mal impressionada comigo. Nunca a vi na janela. O Quim Zé

- Queres que pare?

e não valia a pena parar porque não reparava em mim. O que lhe terá acontecido? Casou? Teve filhos? Ou continua no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma? Deve continuar no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma, porque carga de água havia de me ligar? Ligava o professor

- Escreve aí no quadro uma oração subordinada

e deu-me um estalo porque escrevi soburdinada. Até hoje acho soburdinada mais bonito. O professor era uma besta de violência, distribuía chapadas pela aula e eu queria ficar grande num instante para lhe aplicar uma sova. Quando fiquei grande procurei-o na lista telefónica para lhe devolver os estalos: nunca o encontrei e ninguém sabia dele. Nos intervalos de bater tirava pêlos do nariz ou mandava-nos comprar-lhe cigarros. (...)

- Estás a pensar na morte da bezerra, tu?

- Não, senhor André

- Então vem aqui ao quadro escrever uma oração subordinada.

Tudo isto me regressou, num vómito instantâneo de imagens, mal a minha prima Ana Maria

- António

de braços abertos na rua, mais baixa que eu, que esquisito. Os olhos dela iguaizinhos, redondos, uma festa que me soube tão bem na cara. Depois acenámos adeus e fui-me embora. Entrei no carro, vim para aqui fazer isto. Acabei o livro, estou vazio. No meio da prosa chegam traduções minhas em grego que a agência mandou por esses correios especiais em que a gente tem de assinar um papel. Assino sempre na linha errada e o empregado diz sempre

- Não faz mal.

Desta foi em grego, da última em macedónio ou polaco. E aparece logo o senhor André a anunciar aos gregos, aos macedónios, aos polacos

- Escreve soburdinada, o camelo

num desprezo sem fim, e os gregos, os macedónios e os polacos a concordarem, escandalizados. Devem achar os estalos merecidos:

- Soburdinada, que horror, anda a gente a publicar este artolas

e o artolas, distraído deles, a pensar na morte da bezerra. Não: o artolas, distraído deles, a respirar o vapor do caneiro, espantado com os ratos. Não: o artolas a hesitar como se acaba esta crónica. Não a acabes, artolas: fica assim".



Excerto da Crónica de António Lobo Antunes para a Revista Visão desta semana. Podem ler o texto completo aqui. Os destaques a negrito são meus.
Há anos que não ouvia/lia "artolas"! Já não é um insulto comum, o que lhe dá uma certa graça. :)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Duas caricaturas e uma citação de António Lobo Antunes


Caricatura de António Carrilho





"(...) penso no absurdo de escrever. De estar a escrever quando podia estar com os amigos, ir ao cinema, ir dançar que é uma coisa de que gosto... mas não, um tipo está ali e é um bocado esquizofrénico. (...) Há sempre uma parte subterrânea nas obras de arte impossível de explicar. Como no amor. Esse mistério é, talvez seja, a própria essência do acto criador. (...) Quando criamos é como se provocássemos uma espécie de loucura, quando nos fechamos sozinhos para escrever é como se nos tornássemos doentes. A nossa superfície de contacto com a realidade diminui, ali estamos encarcerados numa espécie de ovo... só que tem de haver uma parte racional em nós que ordene a desordem provocada. A escrita é um delírio organizado".

Jornal de Letras, Janeiro 1982


domingo, 1 de fevereiro de 2009

António Lobo Antunes por Isabel Stilwell

António Lobo Antunes é, no mínimo, desconcertante. A meio da entrevista, tenho vontade de vir embora. Sinto-me como quando estava no exame de condução - sabia que tinha chumbado mas o examinador continuava a pedir-me que fizesse manobras e tentasse meter o carro em espaços impossíveis. E, no entanto, Lobo Antunes só fez sorrisos - um sorriso angelical que condiz com os seus olhos muito azuis e que se segue, quase como um tique, a uma frase que percebe ter-nos deixado nervosos.


Não grita, fala num tom suave e é educadíssimo - pede para repetirmos a pergunta duas ou tês vezes, as suficientes para que fique bem evidente que estúpida e vazia é.


Afirma repetidamente que não faz juízos de valor, nem se acha acima dos outros, mas depois vai dizendo, a propósito de tudo e de nada, que só gosta de entrevistas quando os entrevistadores têm qualidade, até ao momento em que temos vontade de apresentar desculpas e sair. E aí, faz um outro dos seus sorrisos ternos e garante que não são insinuações, porque não é homem dessas coisas e, de resto, "só a conheço há meia hora".


Tento mais uma pergunta. "Falar de mim? Mas isso não me interessa", diz-me hoje, agora, porque quando marcou a entrevista, informado desse mesmo objectivo, não protestou.


E eu volto a sentir a mesma perplexidade que senti quando lhe perguntei qual era a memória mais antiga da mãe e ele me respondeu que isso era pessoal e não me dizia, ou se inclinou várias vezes sobre a secretária para me pedir (educadamente) que repetisse outra vez aquela pergunta absurda, estranha, inacreditável do "Tinha um urso de peluche?".


Culpo-me a mim própria. "Ele tem toda a razão, isto são perguntas que se façam a um grande escritor?", penso eu, intoxicada por aquela estratégia que à distância percebo não ser mais do que uma forma de confundir o inimigo.


E, de facto, o que é que interessam as mães, os pais e irmãos, os ursos de peluche e os comboios eléctricos, os psiquiatras e os amigos de infância, a relação com os doentes, as criadas e as tias, os livros lidos alto e os lares de terceira idade, as árvores de Benfica e os jardins onde habitavam os corvos e tudo aquilo com que Lobo Antunes transforma os seus livros em obras de arte, nos atrai, emociona, faz rir e prende página após página? Que importância têm e que interesse há em falar neles, quando podemos meditar sobre o fio da narrativa ou embrenharmo-nos em citações de escritores, grande escritores, que os bananas dos jornalistas não conhecem, nem querem discutir, porque - imagine-se - gastam o tempo todo a tentar perguntar coisas que os leitores da entrevista estariam mais interessados em saber.


E o mais extraordinário de tudo isto é que, durante umas horas, não percebemos a contradição, não damos pelo facto de Lobo Antunes ir falando repetidamente de si próprio - desde, evidentemente, que não seja directamente em resposta a uma pergunta feita, como a criança que só come a sopa quando a mãe olha para o lado. E o mais extraordinário, ainda, é que ficamos com vontade de rezar dois Padres-Nossos e três Avé-Marias por não estarmos à altura de o entrevistar, em lugar de pura e simplesmente batermos com a porta.


E, no entanto, quando deixamos o seu gabinete e percorremos os corredores do Hospital Miguel Bombarda, cruzando-nos com doentes de roupão e a arrastar os chinelos, a conversa parece que normaliza. Ou, pelo menos, a minha cabeça volta a funcionar normalmente - sim, porque não duvido que para o ex-psiquiatra nada disto seja mais que um "delírio persecutório!".


Vamos almoçar ao restaurante mais próximo. Falamos sobre snobeiras e beijos de um lado e dos dois lados, de espelhos de talha e da grandeza da alma, de telenovelas e de tipos de pessoas. E faço o "diagnóstico": Lobo Antunes é um "menino bem (formado)", inteligente, com sentido de humor e espírito crítico que soube libertar-se do casulo onde os "meninos bem" habitualmente vivem a vida toda, e percorrer o resto do mundo, torcendo aqui e ali instintivamente o nariz às mulheres que o tratam por filho e aos escritores que comparam carros parados em semáforos a cavalos impacientes, capaz de gostar para além das aparências, de se emocionar para além do que gostaria e com um génio extraordinário para juntar tudo isto e transformá-lo em personagens e palavras que o tornam num dos nossos melhores escritores. Tudo isto sem deixar de ser, basicamente, um menino "mimado", que com aquele sorriso e aqueles olhos azuis aprendeu todas as técnicas de deixar os outros desconcertados, infelizes e humilhados. Quando quer. Para no momento seguinte ter tanto charme e encanto, que temos medo de ter incorrido em juízos precipitados. E assim sucessivamente.


Texto de Isabel Stilwell a quem, apesar de tudo, invejo aqui o papel de interlocutora. Ou talvez não:talvez seja melhor ficar pelos livros e pelas crónicas.


Publicado em Fevereiro de 2000, na revista Notícias Magazine (suplemento dominical dos jornais Diário de Notícias e Jornal de Notícias), nº 40.


Fonte: http://www.ala.nletras.com/entrevistas/NMFEV2000.htm




terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Oito citações de António Lobo Antunes sobre as mulheres e o amor

Esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas.
fonte: Livro de Crónicas, 1998

É mais sensual uma mulher vestida do que uma mulher despida. A sensualidade é o intervalo entre a luva e o começo da manga.
fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004
Ninguém é bom ou mau na cama. Se há um problema sexual, é outra coisa, mas senão há problemas concretos, basta que se goste muito de uma mulher; se isso acontece, ela é a melhor na cama..
fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002
Teria dificuldade em viver com uma mulher que escrevesse. Eu nunca seria o mais importante na vida dela, viria sempre depois dos livros.
fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

Uma coisa é o amor, outra é a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama, não estarão, de facto, quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam.
fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

No amor podemos substituir uma pessoa por outra, mas não na amizade, porque cada amigo tem o seu lugar e não podemos substitui-lo.
fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

Penso que as mulheres são mais ciumentas do trabalho que das outras mulheres. Mas eu entendo isso. Eu não gostaria de viver com uma mulher que escrevesse porque, se fosse como eu, estaria tão concentrada no trabalho que não existiria mais nada.
fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002
Um escritor é, por natureza, um carenciado de afecto.
fonte: Jornal de Letras, Novembro 1985

Retiradas de www.alaptla.blogspot.pt/p/citacoes.html

A propósito, tenho o livro Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco e devo dizer que vale a pena ler: António Lobo Antunes é um homem complicado mas fascinante. Recomendo a leitura.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Todos os homens são maricas quando estão com gripe

TODOS OS HOMENS SÃO MARICAS QUANDO ESTÃO COM GRIPE


Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija
Chá de limão
Zaragotoas
Vinho com mel
3 aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas, diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Vejo os demónios
Nas suas danças
Tigres sem litras
Bodes de tranças
Choros de coruja
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é a chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
Á cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão-de-ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer.



Letra de António Lobo Antunes, de uma música do álbum
Eu que me comovo por tudo e por nada, de Vitorino, editado em 1992. Com títulos tão sugestivos como Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto, Canção para a minha filha Isabel adormecer quando tiver medo do escuro ou
Fado da prostituta da Rua de Sto António.


Deixo também o

TANGO DO MARIDO INFIEL NUMA PENSÃO DO BEATO

Sem tempo para ter tempo

De ter tempo de te dar

O tempo que tu mereces

Prazeres em que tu morresses

Manhãs que não amanheces

E arrepios que estremeses

Na boca de te beijar

Fico sentado no quarto

Desta cama de pensão

Ausente, despido farto

Cansado dessas mulheres

Que ouvem sem me escutar

Que me olhem sem me ver

Que me amem sem saber

Que me roçam sem tocar

Que me abraçam sem paixão

Que ignoram que eu anoiteço

Que me emsombro que escoreço

Que me enrudo e envelheço

Me pragueio e apodreço

E a quem pago o que me dão:

Uma espécie de ternura

Uma imitação de amor

Lençóis que são sepultura

De carícias sem doçura

E dos meus lábios sem cor

Ai dedos no cabelo

Quero a minha raiva toda

Quero domá-la e vencê-la

Quero vivê-la ao meu modo

Até encontrar por fim

Aquela voz de menino

Há tantos anos perdida

Há tanto tempo esquecida

Em soluços dissolvida

A gritar dentro de mim.



ANTUNES, António Lobo. Letrinhas de Cantigas. Lisboa : Dom Quixote, 2002.

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